12. No Grupo Escolar Martiniano de Alencar
e os irmãos, quais retalhos descosturados, tristes e desamparados, não mais puderam partilhar da mesma sala de aula. |
Quando Aécio e eu, ingressamos no Grupo Escolar
Martiniano de Alencar, nosso pai nos presenteou com bolsas de couro. Bolsas
lindas. A do meu irmão marrom. A minha azul marinho. Um primor. Recebemos o
presente aparentando alegria porque, realmente, ansiávamos pelos caixotes de
madeira com “dobradiças” de aparas de couro, usados pelos demais alunos.
Ficamos silentes, mas deslocados. Nossos colegas, após as aulas, regressavam as
suas casas cantando e acompanhando o compasso da música, com batidas nos
aludidos caixotes. Eu trocaria, com certeza, minha bela bolsa por um deles.
G. E. Martiniano de Alencar à esquerda da Igreja do Rosário |
G. E. Martiniano de Alencar, Barbalha, Século XX. Vista aérea. |
Nosso Grupo, hoje E E F Senador Martiniano de Alencar. 2013-Barbalha |
Senti falta dos jardins do "meu "MARTINIANO DE ALENCAR. |
A princípio ficamos tristes. Acabara nossa parceria. Quando do nosso ingresso no
Grupo Escolar, não havia turmas mistas. As meninas frequentavam
as aulas no turno da manhã, os meninos, no da tarde. Aécio e eu nos separamos.
Ficamos cada um por sua própria conta. Como ele acostumara-se a que eu anotasse
os recados, cuidasse das tarefas de casa, perdeu-se um pouco. Também, a irmã
providência esteve sempre ao meu lado. Quando cursei o segundo ano primário,
dona Ozenir Correia, foi minha professora. E que professora! Ela sabia
despertar em cada aluno, em cada aluna, o melhor de sua personalidade. Além
disso, era educada, dedicada, competente, antenada e amiga. Tímida, franzina,
calada eu me sentava na carteira da primeira fila e não perdia nenhuma de suas
sábias palavras.
Professora Ozenir Correia |
Terminado o ano, ela solicitou junto a diretoria, permissão para acompanhar aquela turma que lhe parecia especial. Solicitação acatada, tive o privilégio de ser guiada por ela, do segundo ao quinto ano primário.
Dona Ozenir, conosco, organizou o horário semanal de forma a
usufruirmos o melhor daquilo que a escola nos oferecia. Assim além das aulas
de Português, Aritmética, História, Geografia Ciências, Ginástica, Jardinagem( havia um lindo jardim, com canteiros maravilhosos, à entrada do Grupo. Aos alunos de cada sala cabia conservá-lo bem tratado, adubado, podado, isento de insetos nocivos. No dia da árvore, recebiam premiação os alunos cujos canteiros mais se destacavam tanto pelo cuidado, quanto pela beleza) e Trabalhos
Manuais, nos presenteou com horas de leitura, de canto, de poesia, de redação e
de jogos e recreação. Era a mestra perfeita, sonhada por qualquer pessoa
que deseja progredir na vida.
O Grupo Escolar Martiniano de Alencar gozava o conceito merecido de ser um dos mais sólidos e desenvolvidos estabelecimento de Ensino Público do
Estado do Ceará. Sua diretora, dona Josefa Alves de Sousa, dona Zefinha Couto, com suas filhas, dedicou a
vida a educar crianças e jovens. Para nós, alunos e alunas, ela era alguém
especial, perfeita, íntegra, educada, justa, culta e amiga, que o bom Deus
colocara em nossas vidas. Durante os cinco anos que estudei naquela primorosa
escola, nunca ouvi de nenhum aluno, uma só palavra que ferisse sua dignidade.
Dona Zefinha, como a tratávamos, não nos impunha o medo como arma de poder. Nós
a respeitávamos e temíamos magoa-la. Em nós, logo que a conhecíamos, nascia um
sentimento de profunda gratidão, de orgulho, por ser ela nossa diretora.
Homenagem dos atuais alunos da Escola Senador Martiniano de Alencar á dona Zefinha Couto. |
Reverente, eu a saúdo e dela sinto falta. Como o mundo de hoje necessita das
dona Zefinha Couto! Que garra aquela mulher possuía! Que ousadia! Que
formidável educadora foi ! Como nós, filhos e filhas de Barbalha
lhe somos devedores! Descanse em paz, dona Zefinha. A semente que a senhora
plantou cresceu, multiplicou-se. Cem por um, é o que a senhora pretendia. Muito
mais de mil por um, foi o colhido. Como a senhora, também sou educadora. Posso
ouvir seu coração de mestra amiga, batendo ao compasso dos alunos:
exortando-os, advertindo-os, convidando-os a empreender grades voos. Obrigada, Dona Zefinha.
Relembro saudosa e orgulhosa os finais de ano em nosso Grupo
Escolar. Como vibrávamos ao término de cada ano letivo com a mostra de trabalhos manuais por nós realizados! O que produzimos exposto artisticamente, convidando a visitação. Tinha de tudo criado,
esculpido, bordado: desde cartõezinhos bordados com linha grossa, pelas
alunas do primeiro ano, às belíssimas colchas e toalhas bordadas pelas alunas
do quarto e quinto ano, bem como gaiolas, pranchas e artísticos quadros
esculpidos em madeira, trabalhados pelos meninos. Dona Ozenir, exímia
bordadeira, nos ensinou, a nós meninas de Barbalha, os segredos dos diversos
pontos de bordado.
E o pelotão de saúde? E o Grêmio Literário? E as Semanas de Arte e
Poesia? Quanta Harmonia! Quanta dedicação e ousadia! Nós barbalhenses nunca
pagaremos, por mais que tentemos, o bem que o Martiniano de Alencar nos fez. Em
que moeda se paga o bem? A dedicação? A esperança plantada nos corações?
No quinto ano primário nos apresentavam um livro volumoso com o
título mais ou menos assim: Curso Completo para o Exame de Admissão ao Ginásio.
Além de entender, assimilar, desenvolver, memorizar seu conteúdo, éramos
treinados em correspondência comercial e oficial. Ao término do quino ano
primário, todos os alunos estavam aptos a assumir os mais variados
empregos, além de receberem o título de Professor ou Professora de Quinta
Entrância, que lhes outorgavam o direito de alfabetizar o Povo Brasileiro.
Mais ou menos na metade da rua do Vidéo, à direita de quem se
dirige a Igreja do Rosário, caminho para o Grupo Escolar Martiniano de Alencar,
ficava a casa de dona Rulinha, exímia costureira de roupas masculinas.
Muitas vezes vimos sua calçada coberta por variados tecidos. Isso
não nos incomodava. Havia o lado oposto a sua casa totalmente a nossa
disposição. Entretanto, nossa alegria expressa por nossas canções acompanhadas
da “batida” dos caixotes escolares, a aborreciam muito. Acostumamo-nos a
vê-la, transtornada, à porta de sua casa acompanhada de sua cadelinha, Joly,
uma linda , branca, pequena, esperta e bem treinada cachorrinha, ordenando à
mesma para nos nos “atacar”.
Aqueles seus rompantes, nunca nos incomodaram. A cadelinha era uma só, nós, muitos. E a enfrentávamos com nossas bolsas e caixotes. A senhora, pouco, a pouco deu-se conta que não a levávamos à sério.
Ficamos surpresos quando, em uma manhã, no início de maio de 1946, após
as orações e cânticos diante o altar da Virgem Maria,(naquele ano de cetim
verde recoberto de filó branco e repleto de carneirinhos. Cada um deles representando
um aluno ou aluna, trazendo seu nome
escrito na barriguinha. Abaixo do
“monte verde” um lobo de boca aberta. Os carneirinhos, presos por alfinetes, no
montanha fofa, subiam o monte até ficarem bem juntinho à Virgem, ou dele desciam em direção ao lobo, dependendo do comportamento e do
rendimento escolar de cada discente. Ir para a boca do lobo, era um terror, antecedido de um comprido
“sermão” no qual a maléfica ação daquele, representado pelo carneirinho, era
explicitada) nossa diretora nos informou que “moradores da rua do Vidéo haviam
se queixado junto à diretoria acerca de nosso comportamento quando do retorno a
nossas casas”. Sugeriu que durante aquele tão lindo mês dedicado à Mãe de
Deus, voltássemos silenciosos as nossas
residências.
A princípio concordamos com a sugestão. Entretanto, quando um
colega morador das vizinhanças da dona costureira, nos comunicou que a mesma “vangloriava-se”
por haver calado os alunos do grupo, sentimo-nos usados, traídos,
desrespeitados. “Muita gente merece receber um bom troco a tudo isso” falou com
autoridade um líder estudantil. Daí em diante a “coisa" foi esquentando e, quando pensávamos
que a historia havia morrido, a "turma dos espertos" nos convocou para uma rápida reunião na
hora do recreio. Antes de falarem exigiram que jurássemos, beijando os dedos em
cruz, que nenhum de nós comentaria o que ali fosse tratado. Juramento prestado, resolvido
ficou que sairíamos diariamente cantando e batucando do Grupo Escolar até o início da
rua do vídeo, um trecho bem pequeno. Daí em diante, passaríamos silenciosos
para a calçada correspondente à da casa da dona Rulinha. Se houvesse tecido exposto ao
sol na calçada, todos nós batucando, cantando, gritando e correndo, passaríamos por cima do mesmo, deixando nele, as marcas de nossos sujos calçados. A pedido do líder, tiramos nossos sapatos, chinelos ou tamancos e sentamo-nos no chão em círculo. "Ordenamos" aos nossos pés que fossem corajosos, não se intimidassem quando dono Rulinha gritasse, ou quando a cadelinha Joly latisse, corresse e nos perseguisse.
Naquele primeiro dia de guerra, o" tapete” cobria toda a calçada
da “boca frouxa”. A liderança nos avisou que silenciássemos totalmente e
somente a uma ordem sua, atacássemos batucando nos caixotes, cantando, gritando
e correndo sobre os tecidos úmidos.
Pega
de surpresa, dona Rulinha gritava: "pega,Joly. Corre e morde estes pestes, Joly. Mata estes desgraçados, Joly". A
cadelinha não nos alcançou. Suados, felizes, sentamo-nos no chão bem mais adiante, e rimos muito. O recado fora dado. Agora voltaríamos a nossa antiga e pacata
vida, pensei.
Ledo engano. Nenhuma paz à vista. Daí em diante, o grupo líder,
sentindo-se fortalecido, passou a sortear “quem” passaria sobre o "tapete" da
dona Rulinha. Eu, encolhida, esperava confiante que nunca me indicassem para
tal ato. Mas a minha vez chegou.
- Estás sempre na primeira fila prestando atenção e respondendo
tudo à professora. Sais correndo mal a sineta avisa o recreio. Pensas que
escaparás? Pensas? Pois te enganaste. Chegou tua vez. Estamos de olho em ti.
Se, a partir de hoje, não caminhares ou correres, e sozinha, sobre os tecidos da
megera, não serás mais nossa amiga.
- Posso pensar sobre o assunto e responder amanhã?
- Claro que não. Aqui é assim: ou tu estás conosco, ou estás contra
nós. "Um por todos e todos por um.”
- Bem, eu tentarei.
- Tentarás? Tentarás não. Agirás. Já percebeste como está vivendo
aquela tua amiga, aqui entre nós? Está sozinha. Não pode participar de nenhuma
brincadeira. Fica o recreio todo lendo na biblioteca e isso se o bibliotecário
escolhido não for um dos nossos. É bom
que resolvas logo o que queres.
- Se meus pais descobrirem que eu sujei os tecidos da dona Rulinha
, a peia come.
- O que é melhor para ti: uma surra , ou ficares isolada das
brincadeiras?
- Prefiro a surra.
- Então está resolvido. Se hoje a mulher estender panos em sua
calçada, pisarás nos mesmos. Concordas?
- Sim. Estou de acordo, embora com muito medo.
- Então tá.
Quando de regresso, naquele dia não havia tecidos na calçada. Respirei aliviada. No dia seguinte, porém, lá estavam eles à minha espera. Os líderes me prepararam bem passando barro e tinta em meus pés descalços.
- Sim. Estou de acordo, embora com muito medo.
- Então tá.
Quando de regresso, naquele dia não havia tecidos na calçada. Respirei aliviada. No dia seguinte, porém, lá estavam eles à minha espera. Os líderes me prepararam bem passando barro e tinta em meus pés descalços.
Respirei fundo e qual raio, pisei e corri sobre o úmido tapete ouvido dona Rulinha gritar “ Pega,Joly. Morde Joly. Mata esta menina safada, Joly. Que menina desaforada! Mata, Joly". Meu coração batucava acelerado. Joly nos meus calcanhares... A turma toda gritando. Joly não me alcançou. Passei no teste.
Cansada mas eufórica, sentei-me em um dos batentes da farmácia de seu Alfredo Correia e esperei o coração voltar ao normal. Olhei para meus pés sujos de lama e de tinta e resolvi entrar de mansinho em minha casa escondendo assim a “prova do crime”. Lavar bem meus pés, calçar meus sapatos e só então, me juntar à família.
No dia seguinte o chefe da turma, todo prosa, garantiu-me que não mais me "obrigaria" a pisar nos tecidos úmidos da dona Rulinha. E acrescentou:
Quando deixei o Martiniano, dois anos depois, os tecidos trabalhados por dona Rulinha continuavam sendo alvo de maldades como acima relatei.
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